Ações afirmativas para a afirmação da dignidade humana
A dignidade humana é uma qualidade de todo ser humano, faz parte da sua natureza, é uma característica de qualquer pessoa. Apesar disso, historicamente muitos grupos sociais foram impedidos de exercer suas humanidades dignamente ou vivenciá-la nas mesmas condições que outros, seja em razão de sua origem, raça, gênero, sexo, etnia, deficiências, faixa etária, e outras diferentes características. No Brasil, as ações afirmativas surgem no cenário político como uma estratégia para enfrentar os problemas decorrentes desse processo histórico. Assim, entender as ações afirmativas como a afirmação da dignidade humana, é reconhecê-las como mecanismo de reafirmação do valor intrínseco do ser humano àqueles que não têm sido reconhecidos nem tratados como tal.
Normalmente, materializadas em formas de políticas específicas, as ações afirmativas focalizam determinados grupos, tais como, sistema de reserva de vagas em concursos que ficou conhecido como cotas (cotas para mulheres, cotas para deficientes, cotas socais, cotas raciais); legislação para proteger determinados grupos contra violências, como tornar crime o racismo, o feminicídio, a homofobia e a transfobia, por exemplo; além de programas voltados para determinados grupos sociais, as chamadas minorias (de gênero, raça, sexo, deficiências, etc). No âmbito privado, também são inúmeras as iniciativas que têm surgido, ultimamente, sejam por força de lei ou por iniciativa própria, como vagas de trabalho para mulheres, pessoas transgêneras e transexuais, deficientes, ou programas empresariais de combate à violência doméstica, entre outros.
Durante muito tempo, reconhecemos que as desigualdades sociais são responsáveis por inúmeras mazelas, impedindo que milhões de pessoas tivessem condições mínimas para uma vida digna. Era comum nos noticiários e manchetes de jornais e revistas estamparem, por exemplo, a seca no nordeste brasileiro, a inflação descontrolada, a falta de saneamento básico, a fome. Após a abertura democrática na década de 1980, o Brasil decreta sua Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã, com o compromisso de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. A inflação foi controlada, o Brasil saiu do mapa da fome em 2014, no entanto, inúmeros problemas estruturais permaneceram intocados e quando olhamos para os dados estatísticos, indicadores de escolaridade, moradia, saúde, saneamento básico, violência não deixam dúvidas sobre os grupos mais vulnerabilizados. Por isso, ainda que nos apeguemos à igualdade da lei para todos, na prática, isso ainda está muito longe da realidade de muita gente. Ainda não conseguimos alcançar um dos objetivos fundamentais, previstos na constituição, no seu art. 3º, inciso IV, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Assim, as desigualdades sociais precisam ser enfrentadas considerando a complexidade das relações sociais marcadas por diferenças sexuais, de gênero, de raça, de etnia, de pessoas com deficiências, e todo tipo de discriminação que se desdobra dessas características.
Enfrentar as mazelas sociais é reafirmar a dignidade humana. Para isso é preciso reconhecer que essas desigualdades acometem diferentes grupos de formas distintas, daí a importância das ações afirmativas que são políticas, de iniciativa pública e ou privada, destinadas a enfrentar os problemas causados pelas discriminações sociais de toda ordem. Para uma pessoa que normalmente é preterida, vista como um pária social, um corpo abjeto (como ocorrem a travestis e transexuais), um corpo criminalizado (como é visto uma pessoa negra), um corpo servil (como são vistas as mulheres, “aquelas para casar” e as outras, as negras, para o trabalho doméstico ou sexuais), um corpo “inútil” (como são vistas as pessoas deficientes), um corpo descartável (como são vistas as pessoas idosas), ter oportunidades para desenvolverem suas potencialidades é ter a chance de serem reconhecidas na sua dignidade humana, um valor intrínseco e inalienável a toda e qualquer pessoa.
Numa sociedade em que o trabalho é elemento central para existência, viabilizar estratégias que oportunizem emprego a grupos que tem tido dificuldades para se inserir no mundo do trabalho, é uma ação afirmativa. Se para a melhor qualificação que possibilite ocupar melhores postos de trabalho é preciso maior escolarização, oportunizar acesso e permanência à educação, é uma ação afirmativa. Se os currículos escolares não têm correspondido à diversidade étnico-racial, de sexo, de gênero, de religião, de famílias, etc., requerer a obrigatoriedade de conteúdos adequados a cada faixa etária no que concerne às diversidades é uma ação afirmativa. A convivência com as diferenças, seja no trabalho, seja na escola, pode nos levar a reconhecer aquilo que temos em comum.
Se por um lado, paulatinamente, compulsórias ou voluntárias, vemos surgir as ações afirmativas em diferentes áreas (trabalho, educação, saúde, etc.), por outro, sabemos que as violências e violações seguem ocorrendo e é por isso que movimentos sociais permanecem ativos na luta cotidiana por condições de terem uma vida digna. Um exemplo desses movimentos é a luta das mulheres negras por melhores condições de vida para si e para os seus, que ganha reforço nesse mês de julho, por conta do dia 25 de julho, o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. No Brasil, é também o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Tereza de Benguela foi um líder quilombola de destaque que resistiu à escravidão durante duas décadas no século XVIII. Essa é uma data para reafirmar a luta e resistência das mulheres negras numa sociedade onde o racismo e o sexismo tem lhes vitimado com os piores indicadores sociais. Entre as pobres, são as mais pobres, entre as vítimas de violência são as que mais morrem, as que menos recebem anestesia na hora do parto, são as que mais perdem filhos pela violência estatal, são as que começam a trabalhar desde tenra idade, são as que ocupam os piores postos de trabalho. Mesmo mais escolarizadas recebem uma renda menor que os homens negros, os quais recebem salários inferiores que as mulheres brancas, que, por sua vez, mesmo mais escolarizadas que os homens brancos, têm salários menores que estes.
Como diz Angela Davis: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. E esse movimento é a luta pela sociedade prevista na Constituição Cidadã. Uma sociedade justa, livre, sem preconceitos. Para isso, as ações afirmativas são fundamentais porque são as oportunidades de nos encontrarmos nas diferenças, de reconhecermos nossa humanidade nas diferenças. Porque ao oportunizar a grupos vulnerabilizados a superação das desigualdades sociais em que vivem, elas afirmam a dignidade da pessoa humana, de toda e qualquer pessoa. E isso é transformador!
Lílian Amorim Carvalho - Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá; Professora Voluntária da Escola de Cultura, Fé e Política da Cáritas Arquidiocesana de Maringá.