Os Direitos Humanos e sua trajetória
Em julho de 1985, pouco tempo após o fim da ditadura militar, foi publicado o livro “Brasil: nunca mais” sob a coordenação de representantes religiosos brasileiros, a exemplo do frei Dom Paulo Evaristo Arns. Trata-se de uma compilação de depoimentos e documentos que atestam, de forma chocante, a violência perpetrada contra pessoas consideradas inimigas do Estado desde os anos 1960. São páginas e mais páginas de relatos sobre tortura física, psicológica e diversas formas de violência, “justificadas” pela busca por defender o país, que marcaram os “anos de chumbo”. O livro simboliza um esforço de parte da igreja católica em preservar a memória daqueles que sofreram com a tortura e para impedir a repetição de tais procedimentos. Representa, igualmente, um forte instrumento de defesa para os Direitos Humanos.
Não foi a primeira, nem a última vez que um representante da igreja católica se posicionou desta maneira. O bispo Dom José Vicente Távora se envolveu de forma decisiva na proteção dos menos possuídos que, no Nordeste brasileiro dos anos 1960, viviam as consequências calamitosas da penúria resultante das diferenças sociais no campo, onde resistia uma ordem social sustentada por resquícios da colonização. Com esse posicionamento, Távora contribuía para a proteção de Direitos Humanos considerados fundamentais, como o direito à dignidade, ao acesso a uma boa alimentação e mesmo à propriedade, visto que os trabalhadores rurais da Zona da Mata sequer tinham terras para enterrar seus mortos.
De acordo com a historiadora Lynn Hunt, os Direitos Humanos, para existirem, precisam ser destinados a todos os seres humanos, independentemente da região do mundo que ocupe, devendo ser acessíveis a todas as pessoas. Para que isso ocorra, é necessário haver políticas públicas direcionadas à ampliação de tais direitos e à garantia de sua universalidade. Em diálogo com a sociedade, estas políticas podem criar novos direitos e mesmo reforçar outros, mudanças que costumam ocorrer com tudo aquilo que diz respeito aos interesses humanos. Sendo resultado de esforços políticos, a proteção dos Direitos Humanos é disputada entre aqueles que querem defende-los, compreendendo sua importância, e aqueles que preferem evita-los ou mesmo rechaça-los. Estes geralmente recusam projetos de sociedades democráticas, onde os Direitos Humanos se consolidam com maior força e, em contrapartida, fortalecem os sistemas democráticos
Em 1948, logo após a Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas publicou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma carta que atualizava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e registrava os direitos fundamentais a todos os seres humanos, especificando cada um destes direitos. Os países que assinaram o documento se comprometeram a preservar o direito à vida, à liberdade, à segurança, à saúde; deveriam se empenhar em impedir a tortura e a escravidão, dentre tantas outras coisas capazes de ignorar a dignidade humana. Era uma forma de barrar projetos de sociedade semelhantes ao nazista, dentro do qual milhões de judeus e “sujeitos desviantes” foram assassinados sistematicamente. Mas, apenas listar os Direitos Humanos, relatar suas características e se comprometer a preservá-los é suficiente para impedir desrespeitos a tais direitos? E qual a necessidade de haver um documento no qual estes direitos estejam registrados?
Respondendo a segunda questão, devemos atentar ao fato de que definir, de forma categórica, direitos que necessitam ser desfrutados por todos os seres humanos, foi uma forma de responder à desumanização empreendida pelo regime nazista ao longo do período em que vigorou na Alemanha (1933-1945). A política defendida por Adolf Hitler buscava assegurar que somente os descendentes da raça ariana poderiam ser tratados como humanos, enquanto os eslavos e os judeus, principalmente, eram classificados como parte de uma raça inferior que sequer deveria ser vista como humana. Foram anos de desumanização destes sujeitos para que todo tipo de violência pudesse ser causado a eles. Como dito por Peter Gay em seu famoso livro “O cultivo do ódio”, ao não ver alguém como ser humano as pessoas sentem-se à vontade para destruí-lo. Essa desumanização construída ao longo do tempo, contudo, não foi uma novidade criada pelo Terceiro Reich: está na raiz da escravização de africanos trazidos às Américas para trabalhar na colonização, para citar apenas um outro exemplo.
Já sobre a primeira pergunta que fizemos, infelizmente a resposta é não. Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos, vimos após 1948 em diferentes lugares do mundo, inclusive no Brasil, a violação desses direitos em nome de uma pretensa justiça ou defesa das nações. Os inimigos de Estados autoritários, tratados como ameaças, foram também desumanizados a ponto de serem reduzidos a sujeitos hipnotizados por ideologias contrárias, sem moral e sem ética. É necessário, para além do compromisso em preservar os Direitos Humanos, ações para consolidá-los. Porém, para que isso seja possível é necessário conhecer estes direitos, seus propósitos e seus fundamentos para que possamos perceber que não se trata, como dizem por aí, de um “instrumento para proteger bandido”.
Discussões acaloradas sobre Direitos Humanos têm invadido o debate público no Brasil com bastante frequência. O interesse em torno do tema cresceu significativamente nas duas últimas décadas, um período no qual diversos setores da sociedade encontraram, com muita luta, espaço para defender seus ganhos e até mesmo a sua sobrevivência, ainda que as conquistas por igualdade e pelo reconhecimento dos seus direitos estejam longe do ideal buscado. Esse processo fez com que outras parcelas da sociedade - assentadas em privilégios que dependem de uma ordem social na qual a desigualdade continue existindo - se sentisse ameaçada. Reconhecer os direitos daqueles que, historicamente, tiveram direitos negados é aceitar a necessidade de partilhar com eles o terreno das tomadas de decisões e as estruturas que sustentam a sociedade. É, portanto, reconhecer os problemas que restringem os direitos a muitos para permitir que poucos desfrutem de direitos ilimitados. Trata-se de uma mudança desconfortável para os que, durante séculos, se beneficiam dos privilégios de raça, gênero e classe, causando uma reação contrária à participação popular na construção do mundo e gerando uma culpabilização genérica à ideia de Direitos Humanos como responsáveis por isso.
Pedro Carvalho de Oliveira
Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UEM.
Professor voluntário da Escola de Cultura, Fé e Política da Cáritas Maringá.